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A entrada para a propriedade possuía muros altos protegidos por cercas vivas de vegetação venenosa
que contrastava com a mensagem de “boas-vindas”, no portão eléctrico.
O dono havia promovido certas mudanças no ambiente dantesco da moradia campestre,
colocando mais luz onde havia apenas as sombras dos fantasmas do passado.
Agora, os postes de luz iluminavam todo o jardim, começando na entrada do mesmo, um atrás do outro sucessivamente,
até alcançar uma construção anexa, que mais fazia lembrar um salão de festas,
destacando-se das demais áreas por ser independente da moradia e de possir um formato perculiar.
A partir dali e por um caminho empedrado, os postes eram trocados por tochas orientais e desciam até uma
bela e singular piscina, que naquele momento, mais parecia imitar um lago, um lago pertencente a um sonho,
porque havia velas acesas e flores, que boiavam na água, como que à espera de alguém.
O homem, estava parado na varanda da moradia e segurava um balão de cognac numa das mãos,
rodando o mesmo por entre os dedos de maneira dispersa, enquanto o seu olhar perdia-se no jardim e no salão.
Tinha dispensado os seus dois empregados.
Contudo, todo aquele silêncio instaurado não lhe dava a sensação de que estava sozinho.
Virou o conteúdo num único gole e terminou a sua bebida.
De seguida, caminhou pela varanda de maneira calma, sem deixar de prestar atenção ao jardim e às mariposas que
voavam de encontro as lâmpadas, inconscientes do belo engano.
“Cegam-se por tão pouco !” - Riu-se ao lembrar aquela frase, aquele disparate...tão tipico...
Desceu a escadaria até a calçada, mas assim que os seus pés descalços tocaram no chão frio, parou abruptamente.
A friagem parecia querer invadir as suas entranhas a partir dos seus pés, mas não era só pelo choque térmico que ele havia
cessado a intenção de continuar a caminhar.
Um arrepio bom subiu-lhe pelas costas acima e ele sentiu, novamente, a mesma sensação de haver uma aura acompanhante.
Repentinamente, pôs-se a caminhar para longe da casa a passos ágeis, seguindo para o anexo.
Todo o espaço iluminou-se quando o interruptor foi accionado.
Havia um piano solitário, no meio.
Naquele salão não existiam as habituais paredes, eram todas em vidro, e as cortinas brancas balançavam devido
à brisa da noite que lhes atingia através das enormes janelas abertas.
A luz vindo do jardim penetrava, gradualmente, iluminando o piano com um rastro de luz envergonhada.
O homem olhou para o piano e aproximou-se do mesmo, puxando o banco para se poder sentar.
Apoiou o copo sobre o mesmo, levantou a tampa que protegia as teclas e com uma calma invejável,
puxou o pano de veludo negro que protegia as teclas brancas e pretas, colocando-o ao lado do copo vazio.
Por um momento, o homem de ar consternado observou o ambiente, como as cortinas se moviam numa dança silenciosa,
como a luz dos postes e tochas pareciam harmonizar-se perfeitamente, e que ali, naquele lugar,
nada passava desapercebido, nada estava deixado ao acaso, tudo era premeditado.
Era chegada a hora.
A iluminação desligou-se.
O negro.
O luar.
O infinito.
Virou o rosto lentamente e fitou o caminho, perfeitamente visível, que dava para a piscina.
Fechou os olhos e inspirou o ar com suavidade, expirando depois, talvez, a angústia que sentia.
Ele não era um pianista profissional, mas as notas fluíam de forma melodiosa dado o jeito leve e decidido com que os dedos
tocavam as teclas, viajando sobre elas com carinho.
Era assim que lidava com o que se passa dentro da sua alma, a música afagava as mágoas, as loucuras por cometer
e trazia-lhe as recordações, alimento precioso para um coração jogado ao lixo, para um ser desprezado por quem mais amou.
Era meramente um homem, sozinho.
Tinha qualidades que o permitia desfrutar de companhias agradáveis sempre que quissesse,
mas nada significavam.
Possuía defeitos, claro, mas apesar disso, era respeitado.no seu círculo social,
mas não encontrava conforto em estranhos.
Não era um homem dado à entregar emocional, nos relacionamentos que mantivera.
E depois, depois do que se passará....não houvera mais nenhum.
Tinha se apaixonado. Entregue. Por completo.
Uma vez.
Assim sem mais nem menos.
Sem saber porquê
Sem razão aparente.
Sem se aperceber.
Era por Ela, que os dedos deslizavam pelas teclas naquele instrumento, expondo sentimentos de maneira delicada,
assim como quem inspirou a melodia, era delicada e sensual, um ser esculpido pelos Deuses mais talentosos.
Cantou. Cantou a falar, virado para as portas de vidro que se encontravam abertas ao jardim,
lugar envolto em sombras, apenas torneadas pela sua amiga celestial, única luz, nas suas trevas.
Ainda sou capaz de ouvir a tua gargalhada, aqui, sentada.
Disse que te amava, disseste o mesmo.
Jurei-te que nada nos atrapalharia, juraste o mesmo.
Não te vias com mais ninguém, dizias. Mentiste.
Aqui, neste lugar, neste meu canto,
uniste o teu corpo ao meu, fomos só um.
Cobriste-o da tua intimidade fogosa e molhada, recebeste de mim tudo que te dei,
gritaste o meu nome, chamaste-me de teu amor.
Que graça tem a minha vida agora?
Ainda me questiono o que te fez ir.
Será que devo somente culpar-me?
Hoje e sempre?
Como puderei esquecer-me daquela noite?
Nunca, nunca me hei-de esquecer,
da tua ansia por partir, sem olhar para trás,
Achei que éramos felizes...não percebi...
Há quanto tempo... foi?
Parece que foi... ontem. Ontem...
Ontem tinha te aqui saltitando ao meu lado.
Hoje, resta-me esta música, embalada pelas notas calmas do meu piano.
O nosso amor pode pertencer ao passado
mas eu trago comigo as lembranças
e espero que tu, onde estejas,
tenhas um pouco de mim guardado, contigo,
Se calhar, tudo aconteceu...porque eu...nunca te disse,
Preciso de ti...ao meu lado...para sempre...
Estou preso... a ti...para sempre....
Jamais saberei viver sem ti...para sempre...
OU DISSE???
BASTA! - Gritou - BASTA!!
Bateu com as mãos sobre as teclas, quebrando a harmonia,
transformando a beleza no mais profundo e desprezível barulho.
Um ponto final, na melodia, no ritmo, na letra, na música.
Um ponto final...
Recolocou o veludo no lugar e fechou a tampa do piano novamente.
Outrora quem sabe, noutra noite, noutro lugar...voltasse a tocar.
Levantou-se de forma brusca, afastando o banco.
Encarou a copo sobre o piano e pegou nele enquanto se movia em direcção à saída para depois o atirar para longe.
Refez o caminho para a casa em passos lentos, olhos lutadores brilhantes, punhos cerrados, lábios comprimidos.
Assim que galgou os degraus, parou novamente na varanda, olhou para o jardim e para o céu, vazio e frio,
sem lua, e naquela hora, naquela noite, sem sons, sem vida.
Até já, meu amor... - murmurou - pode ser que por lá, te reencontre.
E, fechou a porta num só movimento, sem som.
Tudo ficou profundamente escuro.
A não ser, inexplicavelmente, a decoração da piscina.
O vento já trazia o nevoeiro, um manto salgado e arenoso, denso e espesso que cobria tudo, que abafava tudo.
Mas...as velas ainda ardiam...e as flores ainda boiavam...
Um estalido grotesco ecoou por toda a casa e pela propriedade fora, rasgando o silêncio espectante,
fazendo com que os cães nas redondezas ladrassem devido ao barulho característico de um tiro solitário.
Uma consequência sem volta, uma dor sem cura, uma resolução final.
A noite chamou pela lua.
O vento levantou o manto.
A aura, algures, estremeceu.
O céu estrelado cobriu a piscina e a água ficou ainda mais radiante.
A natureza respirou.
E, o festim habitual dos grilos, que fora interrompido,...voltou ao jardim.