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Fox-Time

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Naufrágio em Milfontes

15.05.20

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"Atão óm...quese passa? Naa se sente ben?"


Será que era assim que devia transcrever, para reproduzir com autenticidade, a pergunta que escutou depois do almoço,
quando se encontrava sentado num balde invertido, abandonado naquela praia?


Tinha acabado por parar nessa vila no caminho de volta, pouco antes do meio dia.
O dia tinha nascido tapado por nuvens cinzentas espessas mas àquela hora ainda não chovia.
Dizer que escolhera aquela povoação para almoçar por mero acaso seria deturpar a verdade, porque,
mal passou a sinalética rodoviária, brotou uma vontade secreta de fazer a pé as ruas que tinha percorrido numa tarde fria,
rapidamente a transformar-se em noite, de mão dada com ela.


A posta de salmão grelhada e o Muralhas gelado acabaram por dar o toque final, evocando um enquadramento onde,
só faltava a presença dela.

Tomou o café habitual e resolver ir até à praia que, vira na televisão, albergava uma tesouro.
Pelo menos é assim, que em criança, olhamos para os navios naufragados.

Foi, com um andar descontraído, que caminhou pelo trilho arenoso até à encosta,
descendo seguidamente até ao areal onde jazia a carcaça do navio de porte mediano.

Aí, encontrado um balde de cor preta desmaiada com pega de aço enferrujada e partida, sentou-se.
De queixo apoiado nas mãos cruzadas, cotovelos nos joelhos, contemplava a estrutura de madeira idealizada
pelo homem que agora era esculpida pelas forças da natureza, quando aquela pergunta o chamou de volta ao mundo real.


Rodou a cabeça para trás e levantou o olhar dando de caras com um sujeito idoso, meio debruçado sobre ele.
Vestia uma camisa de flanela gasta, aos quadrados pretos e vermelhos, calças de ganga tingidas de muito,
galochas acinzentadas e um boné branco e azul ratado, mas onde ainda se conseguia distinguir o brasão
de uma colectividade desportiva local.

A barba grisalha de aspecto áspera fazia o seu melhor para esconder alguns dos intervalos que
espreitavam entre os lábios ressequidos.


Levantou-se para cumprimentar o idoso.
"Está tudo bem...obrigado..."- mas, deu conta que tinha de limpar as faces.

"Bora lá daí óm! Venha con a gente que botamos abaixo um drago!"

Noutras circunstâncias, teria recusado amavelmente, mas sem saber porquê seguiu o velhote pelo areal acima
ouvindo-o falar do clima incerto e de como "deram conta de tudo, estes lanzudos e aldrabões!".

Aí, sentaram-se em cadeiras que existem apenas na cozinha da casa da avó, assentos folhados a imitar madeira,
que magoam o rabo passado um tempo, sendo as estruturas em ferro fundido.


Sem qualquer pedido efectuado, uma senhora com avental típico de quem tem todo tipo de lida,
colocou uma garrafa e dois copos para bagaceira na mesa, cujo tampo se assemelhava ao das cadeiras.

Brindaram "à saúde" e num gesto rápido engoliu, ou melhor, atirou com a aguardente pela goela abaixo.

"Atão conte lá...problemas de finanças ou patroa?"

"Bem..nem uma coisa nem a outra...eu..."

"...oh migo qual é a sua graça?"- interrompeu o velhote

"Alex...e o seu?"

"Manel...Manel Francisco da Silva!...há 84 anos!" - e uma sorriso amarelo invadiu a mesa levando-o igualmente a rir.

"Desembucha óm!"

"Pronto...olhe...coisa do coração. Digamos que...perdi quem há muito amo...e que sei...que não há esperança de...a ter de volta..."

"Logo vi...Bem me apareceu! Essa cara fechada...só podia ser mal de amores..."

O sol já não lhes fazia companhia e o vento vindo do mar obrigava-o a subir o fecho do casaco de malha que trazia,
um casaco malhado em tons de cinza que ela lhe dera e que hoje em dia até assentava melhor.


A conversa fluiu animada, com o seu companheiro de ocasião bebendo ao ritmo de quem está confortável com o teor
das bebidas próprias para homens de barba rija.

Trocaram palavras de saudades passadas e o pescador de pele enrugada, apesar de sua evidente falta de instrução académica,
austentava uma sabedoria de vida que o surpreendeu.


Contou-lhe de uma rapariga de Serpa, de onde era natural, com tem tinha namorado longamente, às escondidas.
Dizia ele, que ainda hoje sentia uma mágoa quando se lembrava como ela, depois de terem combinado fugirem juntos para Lisboa,
acabou por terminar o namoro para depois casar com o filho de um agricultor abastado, lá na aldeia.

Realmente, por momentos, Alex conseguira aperceber-se da expressão de tristeza, quando o companheiro falou.

"Olhe migo, digo-lhe isto. Não se mate por dentro. Não perca o juízo. Não lhe vai valer de nada!
Nenhum óm consegue segurar uma mulher, não querendo ela!
Elas são assim!

Só à porrada!
Mas se somos bons, como tem de ser, elas fazem o que lhes vem aos cornos!

É assim óm!
Não é da gora!
Elas hoje, em tão, fazem o que bem querem!"

"Se calhar tem razão...mas...o problema é conseguir esquecer...não é?"

"Certo! É fodido!
Você compadre, você tá fodido!...

Mas olhe...faça como eu...
Procure lembrar só as coisas boas...os tempos que se fizeram felizes...
É o melhor que se consegue...para acalmar o nosso espírito!"

E riram-se os dois a gargalhada, sem amarras nos olhares, porque, apesar das diferenças colocais que os separavam,
ambos sabiam do que se falava ali, naquele sítio, naquela tarde.


Despediram-se com um abraço fraterno, ficando para outro dia, novo encontro para falar mais um pouco.
Era hora de fazer-se à estrada.
Inseriu o cd que ela lhe oferecera, o de cor azul,
A música começou e ele arrancou, a cantar, de regresso ao quotidiano.
Esta música - pensou - quando ela a escutar, vai sempre recordar-se. O velhote tem razão...

De olhos postos na estrada e pé pesado no acelerador, sabia que a vida segue o seu percurso, sem contemplações
e que o passado não faz o futuro, apenas o torna mais belo, se assim quisermos.

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