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Fox-Time

Fox-Time

Apesar do Mal

10.08.20


Levantou-se assim que o Sol se escondeu no horizonte.

A casa a que se confinara estava vazia e silenciosa como um túmulo.
Abriu as portadas de madeira e cheirou a noite que se erguia lentamente.
Era hora de sair.
Era hora de se vestir, de negro, como sempre.

Em pouco tempo estava na baixa da cidade.
Àquela hora ainda se encontrava repleta de pessoas que se misturavam entre si num frenesim angustiante
como que procurando anestesiar carências existenciais e quotidianos medíocres que componham vidas de certo modo miseráveis.

Dois mundos cruzavam-se, um que acordara e outro que se preparava para adormecer.
O cheiro era de estranhos odores que se misturavam e tornavam quase num veneno letal de suor, fumo, esgotos e lixo.
Há muito que o apurado olfacto dele procurava lidar com aquele cheiro e no entanto, ainda lhe causava nojo e repugnância,
chegava mesmo a questionar-se quanto ao porquê das pessoas não verem e sentirem a imundice que os rodeava.

Claro, isso trazia de volta as memórias enterradas, de quando ele, também, fazia parte daquele mundo.

Caminhava na parte de dentro do passeio, tão perto da parede que as pessoas apenas se afastavam dele
quando casualmente o olhavam de frente.

Mas, para ele, não o viam.
Ele era o ser inabalável, diferente.

Depois de deambular pelas ruas labirínticas durante algum tempo e ao passar pela entrada de um bar,
algo impulsionou-o a entrar e ele cedeu ao seu instinto.

Um balcão comprido, com luzes de néon vermelho a iluminar os contornos, hospedava alguns jovens que,
em grupos alegres, falavam alto.
Não era, de longe, o seu tipo de bar, mas sentou-se ao canto, perto da porta.
O empregado de balcão aproximou-se prontamente e saudou-o - “Boa noite, companheiro. O que vai ser ?”

Sem saber o que responder, passou rapidamente os olhos pelas bebidas expostas à sua frente e apontou para primeira que viu.
Logo, um copo alto com um licor vermelho foi-lhe colocado à frente.
Irónico, pensou.
Ele sabia que não ia beber, mas ficou ali a contemplar a simplicidade daquela bebida naquele copo.
A sua mente divagou durante alguns instantes até ao momento em que se questionou porque que era que o destino o levara até ali.
Não o queria fazer, não podia.

Tinha prometido a si mesmo que nunca mais viveria aqueles momento outra vez, que suportaria a noite sem contemplações,
sem sentimentos, sem ressentimentos.

Agora, estava a fracassar...mais uma vez.

Foi então que algo como um sussurro fê-lo olhar para as mesas perto das janelas grandes.
Sobre as cabeças dos jovens viu uma mulher, que olhava lá para fora.
Nesse instante soube, a sua alma comprimiu-se como não acontecia há um ano, era sempre a mesma sensação.
A rapariga de cabelos lisos e face pálida perdia-se em pensamentos e sentimentos quase palpáveis para si.
Os seus olhos, maquilhados de sombra escura, nem piscavam revelando uma abstracção total da realidade.
Ele sabia porquê.
Bastava olhar para ela.
Era igual.
Era tal e qual.

É claro que naquela t-shirt, calças de ganga e botas altas parecia uma outra qualquer, mas ele sabia que não,
ele via-a como quem era, como quem foi...


Não esboçou qualquer reacção quando os olhos dela o encontraram ou quando ela se levantou ou quando ela se aproximou dele.
Não queria.

Mas, a sua respiração e postura demasiado tensa, à sua passagem, traíram-lhe, e ela como que esperando um sinal
ou simplesmente porque fora sempre assim, parou, virou-se e dirigiu-se a ele.

Agora, estava a fracassar.

“Olá - boa noite” - a sua voz... a sua voz serena como águas lentas, continha os tons do passado
“Posso fazer-te companhia ?”


Pouco tempo depois já estavam deitados, mergulhados em beijos memoráveis,
em carícias eternas e gestos de amor intemporais.

Ele revivia momentos guardados, momentos que lhe foram roubados,
momentos presos a momentos como aquele, para sempre.

Matreiro, como era da sua natureza,
o tempo passara despercebido até o relógio da igreja bater as seis da madrugada sobre a cidade.


“Tenho de ir!” - disse assustado.

“Não vás...”

“Tu não compreendes! Eu não sou como tu! Tenho de ir!”

Ela agarrou o seu braço com força e olhou fundo nos seus olhos.
“Não vás!” - repetiu implorando - “fica comigo...não sei explicar...fica...não vás...”

Ele segurou-a pelos ombros.
“Tenho um segredo em mim que está para além dos teus sonhos.
Eu quero ficar contigo, mas não posso! Nunca poderei, nunca !”

“Que segredo é esse? Porque sinto o que sinto, que te conheço, que há algo de familiar no meio disto tudo ?
Deves-me isso!” - gritou soluçando.


Ele olhou para o lado, a sua mente pedia consentimento ao seu coração para proferir as palavras que iria dizer.
“Eu sou um ser diferente” - disse de olhos baixos, sem coragem para encarar os grandes olhos negros dela.

O mundo parou.

“E, de uma forma estranha, sinto que...eu sou tua...para sempre, não é ?”

Ele não podia responder, como explicar a violação das regras, o amor desmedido, a loucura, a tragedia, o feitiço...para todo tempo...
Como explicar o castigo...de lhe ser dado um amor eterno, em noites singulares, ano após ano, para recordar como era bom,
para relembrar como era terrível...

Ela não fugiu, não o temeu... simplesmente abraçou-o.
Sentiu uma chama dentro de si a acender como um toque divino.
Sentiu-se vivo.
Abraçou-a também, fortemente, e sentiu a cabeça dela no seu peito.
Fechou os olhos tentando eternizar aquela sensação de plenitude.
Sucumbiu.

A realidade regressou repentinamente com uma forte dor.
Tão forte que o seu corpo se contorceu em dores.
Viu sangue.
Tentou afastar a jovem dele mas já era tarde.
Todo o seu peito estava manchado de sangue, o seu pescoço, o seu ombro.
Esse sangue que lhe era vital, que era maldito... até que tudo acabou.
Ajoelhou-se.
Deixou o corpo inerte deslizar para a carpete branca.
Passou a mão pelos lábios limpando o sangue que roubara.
Beijou-lhe os lábios imóveis e olhou-a com saudade antecipada.

Hora de ir.
Pensou se deveria negar-se a tal e deixar o sol fazer o seu estrago.

Não, apesar de horrendo, quereria vê-la...outra vez...e...outra vez!

Silenciosamente, rodou a tranca e fechou a porta atrás de si.

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