A Tempestade ( Fim )
02.12.19
A mão dele procurou o corpo nu dela por toda a cama, mas não o encontrou.
Vagarosamente abriu os olhos.
A tempestade havia passado.
Um vento suave entrava por uma brecha da janela, cuja tranca se partira.
Ela não estava no quarto.
Lembrou-se repentinamente da noite.
Da inimaginável noite que vivera !
Saltou da cama e começou a vestir-se apressadamente.
Fora tudo tão maquiavélico com a Carolina, mas tão bom, como nunca antes o tinha sido.
Mas e a Rita?
Como tinha ele conseguido fazer tudo aquilo na noite em que ela morrera?
O nascer do dia trazia-lhe uma manta pesada de culpa e remorso, forçando-o a sair do quarto para procurar
um local mais arejado, sentia que ia vomitar.
Uma inexplicável sensação do macabro tomou conta dele.
Que noite horrenda! Que noite maravilhosa...A melhor e também a pior.
Desceu as escadas.
Também não estava na sala.
Estava prestes a ir até a porta da entrada quando os seus olhos, por mero acaso, repararam numas portas duplas, meio abertas.
Estranho, pensou, não tinha dado por elas antes.
Chegado ao pé, deteve-se diante das mesmas.
Dali, conseguia avistar o começo de uma escada que mergulhava à esquerda, na escuridão.
Resolveu descer.
Talvez a Carolina estivesse lá em baixo no que aparentava ser a cave da velha casa.
Cautelosamente, com cada pé a apalpar o degrau seguinte, Miguel era invadido novamente,
como acontecera na noite anterior, por uma sensação estranha, a qual ganhava mais razão de ser à medida
que a temperatura baixava e o frio, a par do silêncio, tornavam aquele destino cada vez mais inquietante.
Havia pouca luz no piso e a sua origem não lhe era perceptível.
No entanto, pode distinguir algumas tochas nas paredes que formavam um corredor largo que deu lugar
a um salão de paredes altas que parecia ter alguma coisa no centro, como uma mesa, que as tochas extintas guardavam.
Tornou a chamar pela Carolina.
Que diabo faria ela ali ?
Percebeu então que a pouco luz presente emanava das próprias paredes, levando-o a pensar que se tratava
de um tipo de rocha ou minério invulgar.
Progressivamente, os seus olhos adaptavam-se à luz e Miguel foi surpreendido pela estranha natureza das paredes.
Aproximou-se e deixou correr a mão pelas irregularidades.
Havia um nicho entre duas das tochas.
Uma pilha de crânios, humanos e não humanos, preenchia-o.
Alguns tinham rolado para fora e ao caminhar, quase pisou neles.
O salão estava a ficar, cada vez mais, perceptível.
Os seus olhos fixaram-se na parede do fundo dominada por uma enorme pintura que tinha sido executada
precisamente em cima da própria parede.
Miguel olhava a estranha figura incrédulo.
Estava sentado num trono dourado.
Tinha pernas peludas com cascos no lugar de pés e um torso humano enorme,
musculoso, com um coração de fogo ardendo no peito nu.
Na sua mão direita, humana, segurava uma imponente espada.
Olhos escuros, mas meigos, irradiavam de uma cabeça de bode.
Voltou-se para o que havia pensado ser uma mesa.
Tinha uma base esculpida com inúmeros anões deformados segurando uma pesada laje de mármore.
Manchas marrom-avermelhadas concentravam-se no centro da laje, ainda que várias carreirinhas do mesmo tom seguissem para as bordas,
adivinhando-se o seu local de queda e impacto ao olhar para o chão de pedra.
O seu coração começou a bater mais depressa embora soubesse que não havia razão para ter medo.
Aquela casa tinha sido erguida sobre um local onde algo terrível acontecera, à muito, muito tempo atrás.
A parede da direita também tinha um nicho.
Enfiou a mão e agarrou num objecto relativamente grande e pesado, puxando-o para fora.
Era um livro.
Ao retirar o livro de capa dura, não consegui impedir a queda da espada que se encontrava inadvertidamente escondida por debaixo.
O som do metal quebrou o silêncio e Miguel assustou-se com a corrente gerada de ar gelado.
Colocou o livro sobre a mesa a pegou na espada.
Havia uma substância seca avermelhada na lâmina. Não era difícil imaginar o que seria.
Ao erguer os olhos, deu conta que na parede oposta, sobre as portas por onde tinha entrado, outra pintura tinha sido elaborada.
O seu coração contraiu-se violentamente, suor frio cobriu-lhe o corpo todo.
Era o rosto dela ! Carolina!
Caiu de joelhos.
Estava deveras confuso.
O seu coração corria a um ritmo louco e ele contudo sentia-se como que anestesiado!
Carolina era retrata como um anjo de asas brancas e rosto delineado e sereno, mas ele reconhecia o olhar penetrante
e o sorriso cativante, meio escondido, que ela tinha evidenciado.
Sem duvida, era muito bela. Encontrava-se no local vazio e frio.
Pela primeira vez, Miguel teve aquilo que alguns chamariam de déjà vu.
Levantou-se e colocou a espada ao lado do livro.
Algumas palavras tinham sido escritas na capa de couro, em alguma língua antiga, mas estavam desgastadas pelo tempo.
Abriu-o e sob a luz tremula, começou a desfolhar.
Folha após folha, olhava os desenhos com espanto e não demorou muito a perceber que aquele livro contava a história
de um Anjo e um Sagitário e de um terrível acontecimento.
O seu autor tinha escolhido o meio mais primitivo e mais estendível de todos para contar a história deles – o desenho.
O tempo já não tinha qualquer importância e sua presença ali tornara-se quase obrigatória.
Sabia que não era coincidência.
Sem ligar a horas, Miguel estudava o livro e concluía que um grande amor tinha resultado numa grande tragédia.
Pelo que conseguia perceber, o Anjo tinha enfurecido alguns dos deuses porque não lhe era permitido amar,
muito menos um sagitário, ser menor e subserviente aos deuses.
Por tal amor, ela fora perseguida e morta num horrendo ritual, naquela mesa, ali mesmo,
tendo a sua alma sido banido para sempre, ficando impedida de contactar com outros seres.
O livro era, depois, dedicado à caça que o sagitário fizera aos assassinos da sua amada,
e Miguel não pode deixar de ficar incomodado com os diversos desenhos representativos das diversas execuções levadas a cabo,
igualmente naquela mesa.
Que grande amor, pensou, só um amor assim poderia tornar aquele sagitário mais forte do que os deuses.
Ao chegar às ultimas folhas, reparou que os desenhos estavam menos bem conseguidos,
como se a mão do autor tremia e quando deu conta que o ultimo desenho do género mostrava o suicídio do próprio sagitário, percebeu.
Percebeu o livro, os crânios, a espada, e as pinturas...
Tudo em memória dela, em memória de um amor proibido, tudo por vingança...
Voltou a ultima folha … e deu um salto para trás enquanto solto um grito desajeitado !
Tinha dado com algo escrito...frases actuais...palavras em português corrente!
Um calor arrebatador invadia o salão e das paredes emanava uma luz replandescente.
Miguel foi até à mesa e olhou o livro.
Todos temos o nosso destino, o dela foi trazer-te até mim.
Não me reconheceste, meu amor ?
Olha a tua espada através do teu coração !
Grita o meu nome !
Vem ter comigo!
Este é o nosso momento!
À tanto tempo...que te espero...
Sempre TUA
Carolina
Uma estranha serenidade tinha tomado conta do Miguel.
O salão transformara-se no olho de uma tempestade violenta.
No entanto, ele permanecia calmo.
Pegou na espada,
Levantou-a diante dos seus olhos e viu o seu reflexo e viu o reflexo do sagitário!
Uma súbita felicidade contagiou-o.
Miguel deitou-se sobre a laje de pedra e fechou os olhos.
Ela estava ali, a pairar sobre ele, sorrindo aquele sorriso contagiante...
Ergueu a espada na vertical.
Sim, meu amor, agora...para sempre !
E a espada caiu !
O Amor vencera.
E a Tempestade...terminou...