Chuva Cantada
13.11.19
Olhava a chuva que caía com força oblíqua.
Ergeu os ombros, inclinou a cabeça para trás e comprimiu a nuca na tentativa desesperada de extinguir
a dor de cabeça que se apoderava dele.
Fechou os olhos.
Inclinou-se para trás na cadeira e respirou fundo.
Perguntou a si mesmo o que estaria a sentir naquele momento, mas o barulho ensurdecedor de
pneus molhados e o constante martelar vedavam a possibilidade de qualquer resposta sã.
Levantou-se e escolheu outro lugar onde se sentou, afinal, por vezes o simples facto de mudarmos de sítio,
pode alterar temperamento e emoções.
Voltou a fechar os olhos.
Não pode deixar de sorrir – aquela canção tinha que tocar !
O barulho era,agora, menor.
A voz sensual da cantora tomará conta do local e as palavras cantadas ganhavam vida própria.
Esboçou novo sorriso.
Ocorreu-lhe que as canções tinham bastante em comum com os horóscopos.
Quase por magia,cada pessoa reconhece e intrepreta-os à sua maneira,como se de facto fosse possível
atribuir uma verdadeira e específica individualidade aos mesmos.
Era mesmo espantoso!
E depois?
Que tinha isso de tão mau?
Quem não terá associado a uma canção,ou outra,um determinado acontecimento ?
A canção atingira o ponto fulcral.
Quadros invasores de imagens intensas sobreponham-se, ficavam a pairar por ali...
não havia como evitar...como contornar...
Por vezes conseguiam ser tão reais que ele apurava com facilidade os cheiros e sons que deles emanavam.
Abriu os olhos.
A chuva tinha dado lugar a um sol radioso.
A canção terminará.
Tocaria outra vez, provavelmente dali a umas horas.
Tocaria durante dias a fio até perder o seu encanto junto dos milhares que apenas a ouviam como uma qualquer outra canção,
estava irremediavelmente condenada a ser guardada por alguns que a nunca esqueceriam, que fariam dela memória cativa
de situações vividas e jamais apagáveis.
Levantou-se e foi até a rua.
O sol ameaçava fugir e esconder-se.
O transito fluía.
Cães ladravam.
Conversas de esquina.
Crianças a brincar.
Era só mais uma manhã de um quotidiano ritmado ao som da vida.
Na fila de transito que se formará por instantes, um carro atraiu a sua atenção.
Apercebeu-se das lágrimas que nasciam debaixo de uns óculos grandes e escuros e que não paravam de correr desalmadamente.
Franziu a testa, semicerrou os olhos.
Aquela canção...aquela canção tocava...dentro daquele automóvel..!
Sentiu-se triste.
Não conhecia quem chorava.
Mas entendia.
Pena era, que nem sempre a mesma canção conseguiria trazer o sol
a quem a escutá-se,mesmo depois,
de uma chuva cantada.