Tapete Meu
22.06.19
Chegou um som da porta.
No início, indistinto.
A água e as mãos ensaboadas faziam uma tempestade sobre os seus cabelos.
Depois, mais forte. Batidas.
Gritou - “ Já vai !”
Fechou a água, enrolou-se numa toalha e foi apressadamente para o quarto.
Enquanto uma mão esfregava vigorosamente, a outra vasculhava a primeira gaveta.
“ Já vai ! Espera !” - resolveu gritar, antes que batessem novamente.
A correr, vestiu a cuecinha branca, velha conhecida do fim-de-semana sozinha em casa, e enfiou-se no pesado camisolão vermelho
que domava qualquer espécie de frio que ousasse fazer-lhe mal.
Francamente, quem quer que fosse naquela noite chuvosa, não se iria importar de vê-la à vontade, e se ligasse,
que fosse para o inferno até porque eram onze e tal da noite !
“Já vou !”
Primeiro o desodorizante, depois o perfume e saiu a correr para a sala.
Deu uma vista de olhos rápido ao caos que a rodeava – as roupas no chão da casa de banho, louça por lavar,
almofadas espalhadas no tapete da sala...
E o pó ! Que se lixe !
Sentiu o vento frio nos pés.
Tinha-se esquecido, outra vez, de comprar o friso de protecção para a porta de entrada.
Sentiu o metal frio na mão amaciada pela água quente do banho.
Girou e abriu.
Mas a lufada de ar gelado que sempre acompanhava o movimento não aconteceu.
Ele barrava o vento.
Estava imóvel e estava a fazer uma verdadeira poça de água no seu soalho !
Olhou para ele.
Cabelos escorridos, camisola agarrada ao corpo, as jeans pesadas, a poça a aumentar !
Mesmo assim, era ele.
Mal podia acreditar.
“Tu?” - Contemplou o rosto dele com a vagueio que somente as memórias conferem às expressões humanas.
Nem nos mais loucos devaneios conseguira acreditar que um dia o veria novamente.
Há quantos anos não o via?
Trovejou.
Não conseguiu dizer nada.
Afastou-se, abrindo passagem.
Fechou a porta mecanicamente.
Esqueceu-se de trancá-la.
Tornou a olhar para ele.
Sem pensar, estendeu a toalha húmida e esquecida no ombro.
Não pensou em arranjar uma seca.
Nem pensou na provável necessidade de um banho para aquecê-lo.
Não conseguia pensar.
“Eu vou buscar...roupa seca.” - acabou por dizer.
Há quanto tempo, mesmo, não o via? Sete, talvez oito anos.
“Eu vou lá ter...” - era o que ele lhe tinha dito quando se despediu dela.
“Eu não vou mais esperar...” - tinha sido sua resposta.
Fechou a gaveta, camisa de flanela e jeans penduradas na dobra entre o braço e o antebraço.
E agora, ele estava ali !
Outro trovão irrompeu lá fora.
Um chá quente. Era disso que ele precisava.
Sentiu um arrepio. O vento ainda conseguia entrar no apartamento.
Do corredor, gritou - “vou fazer um chá, troca-te no quatro, ainda te devem servir...”
Parou meio atrapalhada, não o tinha visto passar, já estava na cozinha, a encher o bule.
Carregava no botão do isqueiro e girou o de gás.
Ele estava ali.
Só parou de olhar para a chama azul quando sentiu o cheiro de água fervente, um cheiro característico,
bastante curioso, só quando se ferve água em recipientes de alumínio.
Tinha deixado ferver. Não ia dar um bom chá. Colocou as saquetas na água.
Um relâmpago iluminou a janela da cozinha.
O cabelo húmido no pescoço causava-lha arrepios.
Pegou na manta.
Lembrou-se de quantas noites aquele cobertor tinha acalentado sonhos e enxugado lágrimas.
“Princesa...”
Assustou-se.
Por um momento, tinha enveredado por um trilho de memória.
O som do seu nome naquela voz grave e baixa trouxe-a de volta.
Ajeitou a manta sobre os ombros, prendendo-a com uma das mãos.
Ergueu a cabeça e foi para a sala.
“Onde posso pôr isto?” - mostrou-lhe a roupa e a toalha ensopada.
“Dá cá" - Foi até à casa de banho e demorou-se a voltar.
Ele estava no sofá, sentado. Não ficaria ali, ao lado dele.
Ficaria bem no tapete, encostada entre as almofadas, tapada pela sua manta.
“A Maria?”
Ele fez que não com a cabeça.
Os olhos grandes e castanhos completavam o silêncio, não havia mais Maria.
Desde quando? E porquê?
E porque estava ali?
Como a tinha encontrado?
E porquê, principalmente, tinha sentido o coração pular uma batida quando abrira a porta?
Outros já tinham ocupado aquele mesmo lugar!
Ou tinham ? Aquele mesmo? Mesmo?
Não queria saber !
E depois ?
Tremeu. Atirou-se de encontrou a ele.
O hálito quente humedeceu-lhe a face, perto da orelha.
Rodeou-lhe a cintura e aninhou a cara no peito agora seco e coberto com a sua preciosa camisa.
Sentiu o apoio duro do queixo e a pressão leve mas intensa do abraço nas costas.
Poderia morrer assim.
Sem perguntar.
Sem querer saber.
Só sentir.
Sentir e fazer-se sentida.
Durante a noite choveu ininterruptamente.
A água lavou as ruas, as estradas percorridas, os caminhos esquecidos e refrescou as folhas castigadas
pelo vento que soprara sem cessar.
No apartamento, o chá ficara esquecido sobre o fogão.
A manta cobria o tapete.
Cobria dois corpos que dormiam, transpirados, agarrados, ali, no tapete.
No tapete que ele, em tempos, lhe oferecera.